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O Não-óbvio sobre proteger crianças e adolescentes no digital

  • Foto do escritor: Maria Godoy
    Maria Godoy
  • 8 de nov.
  • 8 min de leitura

“O jovem no Brasil nunca é levado a sério", já dizia o poeta. Inclua-se aí as crianças.


Ultimamente, passou a circular com força a expressão “adultização”. Mas, sejamos sinceros, isso sempre existiu, só mudou de endereço. A diferença é que antes ela acontecia no mundo físico, não digital.


Quem cresceu nos anos 90 sabe bem do que estou falando.


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Domingo à tarde, enquanto as famílias se reuniam para o churrasco, a televisão exibia a “banheira do Gugu” em rede aberta. As meninas sonhavam com o tamanco da Tiazinha (eu tive, socorro!) ou a roupa da Carla Perez para dançar É O Tchan. E o país inteiro naturalizava a sexualização da menina e a infantilização do homem como se fosse entretenimento.


Ou seja: o Brasil sempre flertou com a ideia de que a infância é algo disponível, maleável, que pode ser explorado desde que a audiência aprove. O que mudou agora não foi o impulso de expor, e sim a escala, a velocidade e a permanência do rastro digital deixado.


Hoje, tudo é registrado, indexado e monetizado, e isso tudo começa antes mesmo de a criança aprender a falar.


Onde entra o ECA nisso


Em 1990, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado, o país enfrentava outros tipos de urgência: trabalho infantil exploratório, evasão escolar, negligência institucional e violência explícita. A resposta jurídica foi direta e dura: criança é sujeito de direitos. Essa virada de chave civilizatória foi imensa para o Brasil.


Com o passar dos anos, à medida que aquelas formas mais visíveis de abuso diminuíram, o discurso social começou a se suavizar em favor de novas situações, como a criança que “participa” com a mãe no canal da família.

A exposição passou a ser aceita porque vem acompanhada de um filtro bonito e uma legenda inspiradora, mas, no fundo, a lógica é a mesma que foi combatida lá atrás. A infância continua sendo um espaço de utilidade para o adulto, agora rendendo engajamento, status e, muitas vezes, dinheiro.

O que está em jogo agora


Hoje, quase nenhuma criança cresce fora da internet. E essa presença digital começa muito antes do que a maioria dos pais percebe ou assume.


Bebês de 0 a 2 anos aparecem em vídeos de rotina, consultas médicas, primeiras palavras, reações engraçadas, tudo filmado, editado e publicado pelos pais, que muitas vezes recebem produtos ou presentes de marca em troca.


Aos 3 ou 4 anos, a coisa evolui para “unboxing”, brincadeiras gravadas e vídeos curtos pensados para atrair o público infantil.


Quando chegam aos 7, as crianças já são personagens centrais em conteúdos com estrutura profissional, com desafios, histórias roteirizadas, gameplay, clubes de fãs.


E na adolescência já falamos de influenciadores que assinam contratos, participam de eventos, possuem loja própria e agenda de gravações.


Nada disso é infantil. É trabalho, é audiência, é mercado. E assim deve ser visto e tratado.


Mas o “ECA digital” resolve tudo?


A Lei nº 15.211, de 17 de setembro de 2025, ficou conhecida como ECA Digital, e tenta atualizar a legislação de proteção de crianças e adolescentes para o contexto da vida digital.


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O texto prevê deveres de cuidado ativo para os responsáveis, restringe publicidade predatória e enganosa, proíbe contas autônomas para menores de 16 anos, e impõe às plataformas a obrigação de adotar mecanismos de segurança infantil, supervisão e aferição de idade.


É um avanço importante, e, de certo modo, claramente inevitável, visto que a internet é parte intrínseca da nossa vida nos dias de hoje.


O problema é quando se interpreta a lei olhando somente para o perigo externo: o predador, o estranho, o conteúdo nocivo, o algoritmo perigoso, pois, muitas vezes, o risco também mora dentro de casa, por maldade, desconhecimento ou simples falta de reflexão. O que não se afasta muito de como acontece a maior parte dos casos de abuso infantil no offline também.


Pais, plataformas e dinheiro


Existe um tipo de exploração infantil que a sociedade ainda está aprendendo a reconhecer. É aquela que vem com trilha sonora de trend, boa iluminação, microfone profissional e hashtags de família feliz.

A versão 2025 de “colocar o filho pra trabalhar” não é dar uma caixa de paçocas e mandar para o sinal. Muitas vezes é dar ao filho um canal no Youtube e uma conta no Instagram.

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E o mais interessante (talvez até irônico) é que a exposição nem sempre é por maldade. Ela nasce de um desejo legítimo (do qual, como mãe, compartilho!), da liberdade de expressão de mostrar momentos bons, compartilhar conquistas e desafios, fazer parte de uma comunidade.


Só que cada postagem adiciona um fragmento de identidade a um arquivo público que vai potencialmente acompanhar aquela criança por TODA A VIDA.


Considerando o surgimento e crescimento da internet, nós, adultos, normalmente, começamos a ser rastreados já na vida adulta: quando fazemos um cartão, abrimos conta em app, compramos online.


Já os menores hoje são perfilizados (tem perfis traçados pelas plataformas e terceiros) desde o nascimento. Ás vezes até antes de nascer, porque os pais já publicam ultrassom (fiz isso, confesso), nome, data provável de parto, equipe médica, padrão financeiro, cidade de residência e por ai vai.


Essas informações, combinadas, são ouro para o mercado de dados e publicidade - olha que não estou nem falando de criminosos e questões de risco e segurança, o que dá tema para muitas outras discussões.


Privacidade, nesse contexto das crianças e adolescentes, não significa o famoso “não tenho nada a esconder” que muitos adultos ainda repetem (e que ainda me choca). Para os menores, privacidade significa “ainda nem tive chance de escolher o que quero revelar”.


As plataformas sabem


O YouTube, por exemplo, remove milhares de vídeos diariamente por violarem políticas de segurança infantil. Boa parte é retirada antes mesmo de atingir 10 visualizações, o que mostra que há uma tecnologia funcionando por trás.


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Ainda assim, mais de 500 HORAS de vídeo são publicadas POR MINUTO só naquela plataforma, e grande parte desse conteúdo envolve crianças.


O problema é que o gargalo não é o comentário impróprio ou a utilização indevida da imagem por terceiros, mas muitas vezes a própria existência do vídeo. A pergunta real é: esse vídeo deveria ter sido publicado?


E quem clica em “publicar” é, geralmente, um adulto. Juridicamente, esse adulto é o responsável legal por proteger o menor. A partir desse momento, a fronteira entre amor e responsabilidade legal começa a se confundir.


Responsabilidade compartilhada


O ECA Digital tenta distribuir deveres de cuidado.


Plataformas terão que implementar aferição de idade mais robusta, reduzir a exposição de conteúdo limítrofe e promover experiências supervisionadas.


Os responsáveis deverão zelar pelo melhor interesse da criança também na internet (o que já deveria ser óbvio), evitando exposição, monetização precoce e riscos evidentes.


E o Estado, por exemplo, por meio da ANPD e de órgãos de defesa do consumidor, precisará fiscalizar publicidade e coleta de dados, coibindo o uso abusivo de informação infantil.


Mas o sucesso dessa estrutura depende de algo que lei nenhuma consegue garantir: consciência.


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Professor não quer virar policial de celular. Plataforma não quer perder engajamento. Pais não querem ser lembrados de que “canal de família” também pode ser categoria de trabalho infantil. E o Estado, historicamente, só reage (sem falar nos lobbies que não permitem à política e ao judiciário a imparcialidade na atuação que tanto nos beneficiaria).


O ponto não óbvio


Proteger uma criança online não é apenas impedir que um estranho fale com ela - já falei sobre isso na publicação passada. É impedir que a própria sociedade normalize o ato de converter infância em conteúdo, criança em produto.

Toda exposição tem efeitos concretos, positivos ou negativos - emocionais, reputacionais, patrimoniais e de segurança.

Quando um vídeo mostra rotina médica, notas escolares, crises emocionais ou o interior da casa, ele não está apenas entretendo o público: está arquivando e linkando vulnerabilidades. São dados, imagens e padrões de comportamento que podem ser explorados comercialmente ou usados de forma ainda mais perigosa no futuro.


E antes que venham me dizer “ah, mas meu filho gosta”… criança gosta de doce antes do jantar, de atravessar a rua correndo e de brincar com fogo! Gostar não é o mesmo que compreender e aceitar o risco.


Nós, adultos que somos, muitas vezes gostamos de um docinho fora de hora! Mas, ao menos, nós compreendemos as consequências (ou deveríamos compreendê-las). É por isso que escrevo e que me dedico a esse tema, dentro da privacidade e proteção de dados. Porque preciso que todos entendam os riscos para, então, escolherem com consciência os que desejam assumir.


Esses dias mostrei no Instagram que a definição de privacidade é algo individual, muito particular de cada pessoa. Não é um botão de liga-desliga, mas um dimmer regulado a cada momento da vida.


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O que é invasão para um é só o normal da vida acontecendo para outro. E isso precisa ser levado em consideração.


Por isso meu ponto de partida é sempre sair da ignorância, ter conhecimento, para então agir dentro da lei e dentro das liberdades que nos são tão caras.


Onde a conversa precisa chegar


A aprovação do ECA Digital é apenas o primeiro passo de uma discussão ainda muito maior.

Vêm aí debates complexos sobre aferição de idade SEM vigilância massiva (oh céus, sofro pensando em identidade digital, mas é um caminho sem volta), publicidade dirigida, critérios de risco em conteúdo, uso provável de plataformas por menores e, por exemplo, responsabilidade de escolas e outros profissionais que utilizam dados infantis.


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Também teremos de encarar o impacto das novas leis de inteligência artificial, porque crianças e adolescentes são justamente o público mais vulnerável a usos abusivos dessas tecnologias.

E enquanto tudo isso avança, seguimos com uma premissa simples e antiga, que continua sendo a única bússola confiável, prevista desde a década de 90 no ECA da era do papel: o melhor interesse da criança e do adolescente.

Esse ponto, que parece abstrato, é o filtro que deveria guiar todas as decisões — do legislador ao pai que decide se publica ou não uma foto.

A pergunta é direta: isso vai ao encontro do melhor interesse DO MENOR? (Note, questionamos sobre o “melhor interesse”, e não sobre “o que é bonito” ou o que a criança “gosta”). Se a resposta for “não”, o resto é desculpinha.


Pra levar disso tudo


A infância sempre foi curta. Agora, além de curta, está se tornando pública e registrada. O que discutimos quando falamos de ECA Digital, ANPD e dever de cuidado não é burocracia, é o esforço para colocar um limite civilizatório mínimo num cenário de caos digital, em que exposição virou sinônimo de perigo (social, mental e até físico).


Proteger crianças e adolescentes no online parte do mesmo princípio que no offline. Não é só impedir o contato com o estranho. Ou de se revoltar contra terceiros, como as plataformas ou criminosos.


É ter coragem de reconhecer quando nós, adultos responsáveis, ampliamos o risco para além do que já está lá fora, seja por ignorância, seja por outras razões ainda mais mundanas. E essa, historicamente, é a parte mais difícil de dizer em voz alta.


Abraços, com a calma de quem desliga notificações e moe o próprio café,Maria Godoy


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